Leça da Palmeira, uma cidade à beira – mar plantada desde antiquíssimos tempos tinha o seu modo de viver muito ligado à vida rural, nomeadamente ao calendário do homem do campo.
O lavrador leceiro cumpria religiosa e silenciosamente o seu paciente labor quotidiano ao ritmo que a própria natureza lhe impunha, só descansando um ou outro dia de festa, se isso lhe fosse permitido. Por vezes nem domingos havia!
De Janeiro a Dezembro vivia para o trabalho, relacionando muitos deles com as suas actividades tal como sucede com os meses de: Junho, o S. João; Julho, o de S. Tiago; Setembro, o de S. Miguel; Outubro, o dos Santos, Novembro o de Santo André, ou das sementeiras; e o de Dezembro, o do Natal ou o mês das matanças, por ser a época em que se mata o porco.
A indicação dos meses fazia-se por uma simples festa ou de qualquer acontecimento.
As estações do ano dividiam unicamente, em meses de Verão e meses de Inverno.
No inicio do mês de Janeiro era hábito grupos percorrerem as ruas acompanhados por música de um ou outro instrumento musical, indo de porta em porta cantar as janeiras.
Se o dono da casa correspondia abrindo-lhes a porta, cantavam-lhe: “Viva o dono desta casa / Raminho de salsa crua / Quando se põe á janela / Ilumina toda a rua”. “Viva a dona desta casa / Quando põe o seu mantéu / Quando vaia para a igreja / Parece um anjo do céu. Viva tudo, Viva tudo / Viva tudo nesta hora / Viva também o menino / Para não ficar de fora”; caso isso não acontecesse, gritavam: “nesta casa cheira a unto aqui mora algum defunto. Esta casa cheira a breu aqui, morreu algum judeu”. E… toca a fugir!
Em Fevereiro, dizia-se: “Que matou a mãe ao soalheiro”, e também que: “Lá virá o meu amigo Março que fará o que eu não faço”; tudo isto, claro, relacionado com o tempo de sol e chuva que fazia. Era o mês do Carnaval ou Entrudo, época em que as pessoas se entretiam, disfarçando-se com roupas velhas “correndo o entrudo ou o farrapão”, metendo-se com quem passava, usando esfregarem as caras, mutuamente, com farinha e previlhos. Embora actualmente escasseiem os farrapões, há os mascarados, sendo os encontros em modernos bailes em recintos fechados, estando em decadência o Carnaval grotesco vivido na rua.
Em Março, “em que tanto durmo como faço” ou em Abril de “águas mil, coadas por um funil” ou em que “queima-se o carro e o carril”, ocorria a Páscoa com todo o seu tempo de preparação, com as Procissões dos Passos, a queima do Judas em que é escolhida uma pessoa da comunidade para ser caricaturizado, representada por um boneco de palha com bombas no seu interior ao qual é chegado o fogo após ser lido em tom jocoso o seu “Testamento”, em verso, e a Visita Pascal; e com a chegada do último dia do mês é tradição, os leceiros, grandes e pequenos, cortarem as maias nos campos próximos para as colocar nas suas casas, em todas as portas, janelas e até nos quintais, sementeiras e aidos do gado e capoeiros.
Diz a crença popular que as maias, isto é, as flores da giesta, colocadas nas habitações, significam os sinais postos ao longo do caminho para que Nossa Senhora não se enganasse, aquando da sua fuga para o Egipto com o Menino Deus.
Casa que não tinha maias colocadas ao entrar o mês de Maio “em que se comem as cerejas ao borralho”, o Diabo sujará tudo, além de outros estragos.
O mês de Junho, “com foucinha em punho” traz-nos os Santos Populares com todos os seus folguedos, as fogueiras e os bailes de rua que atingindo o seu ponto máximo no S. João, apesar de “pelo S. João os bois beberem nas pegadas”, “…cobre o milho o rabo ao cão”.
Uma tradição leceira deste mês de Junho é a cascata, que nos traz à memória o deslumbramento da imaginação, da harmonia e da inocência do representar o quotidiano da nossa terra em pequenas figuras de barro compradas na feira da louça do senhor de Matosinhos.
A festa era tal que até se cantava: S. João da Boa Nova. / Nós te qu’remos festejar! / E se queres uma prova, / A tradição se renova, / ‘Stamos na rua a cantar! / … Da nossa terra formosa, / Foste festa popular! /E desta forma amorosa, / Vem tua Leça briosa, / A tradição reatar.
As crianças na rua faziam uma pequena cascata, e por vezes só com um dos Santos na mão, pediam “um tostãozinho para a cascatinha”.
Em Julho, já com o tempo mais quente, começava o ritual dos banhos, primeiro no rio Leça, com fundos lodosos perigosíssimos onde muitos jovens ficaram; mais tarde os banhos de mar tomados de manhã bem cedo e rápido porque o trabalho não esperava.
Em meados de Julho regavam-se os campos para o que se cavavam sulcos extensos de modo a conduzir a água.
Com Agosto à porta surgem as romarias populares, e além das festividades anuais que cada freguesia ainda mantém, perduram as populares e tradicionais romarias, meio pagãs, meio religiosas, onde o povo dá largas à boa disposição.
Pertencem ao número dessas romarias a Santa Eufémia, no alto da Carriça, onde o nosso pai Moisés ia de bicicleta, comprar as alhos e a melancia; a Senhora do Bom Despacho na Maia, etc.
Espontaneamente, ou não, os romeiros juntavam-se em grupos, designados por rusgas e manhã cedo lá iam a pé cantando e dançando, regressando ao escurecer, já com os farnéis vazios.
Destas rusgas nasceu o Rancho Típico da Amorosa defensor e guardião das tradições leceiras que com os seus trajes tão bem conservados, cantares e dançares, mantém vivas não só as tradições leceiras mas também a alma do nosso povo. É um regalo vê-los actuar! Obrigado Raúl.
Durante muitos anos os nossos primos Henriqueta e Hermano Rocha alimentaram a tradição cuidando com toda a dedicação desta nossa tão nobre associação.
Depois do árduo trabalho do campo durante o ano, chega Setembro com a verdadeira azáfama, pois é altura de trazer para casa o milho, outrora transportado em carros de bois, descarregando-o no coberto onde era desfolhado, o que constitui um cerimonial, pois se durante o dia era um trabalho silencioso à noite, ao serão, juntavam-se os rapazes das redondezas. Quando alguém encontrava uma espiga vermelha, “milho rei”, tinha licença para distribuir abraços à roda. Se for espiga “rajada” ou “entremeada”, em vez de abraços à roda, são beijos. Os donos da casa ofereciam pão, vinho, e azeitonas, aparecendo quem tocasse, a gente jovem não resistia à tentação de dançar.
Em Outubro com os trabalhos já encaminhados e o inverno a aproximar-se vamos referir uma outra tradição leceira, que naturalmente desapareceu; referimo-nos às lavadeiras de Leça, que no braço doce do rio lavavam a roupa de sua casa e a de muitas famílias inglesas que à época aqui habitavam, constituía um ritual não só pelo trabalho mas também pelo aspecto social, pois permitia pôr em dia as notícias sobre a vizinhança com o desmascarar de alguns “segredos” e o levantar de alguns boatos! Era uma coscuvilhice! Claro que nos encontros com as mulheres da outra margem do Leça, por vezes as conversas azedavam, ao ponto de chegarem a vias de facto.
Novembro começa com a homenagem aos finados e aqui, por muito que nos custe, vamos falar dos enterros.
Assim, quando morria alguém “tocava o sino a sinal” por duas vezes se era mulher e três vezes se era homem.
O corpo é lavado. Se é homem faz-se-lha a barba, isto é o barbeiro dá-lhe uma “escanhoadela” e é vestido. Posto no caixão procede-se ao velório durante o qual se juntam familiares e amigos, sendo habitual à noite servir café e aguardente.
Á hora de sair o enterro o padre procede ao “levantar do corpo” organizando-se o cortejo fúnebre, à frente a cruz e dois acompanhantes aos guiões ou às borlas, serviço em que ganhámos alguns cobres conjuntamente com os nossos amigos Valdemar e Tito ao serviço do Sr. Silva Armador. A seguir o padre com o rapaz da caldeirinha e atrás do caixão os acompanhantes, familiares e amigos transportando palmas de flores e coroas.
Ainda em Novembro surgiam os vendedores de castanhas que as assavam no forno do padeiro, após o que as punham num saco de serapilheira, cuja boca fumegava, e percorriam as ruas de Leça apregoando: “Quentes e boas! São da quinta da minha avó”!
Em Dezembro, já com frio, e com um cerimonial festivo fazia-se a “matança do porco”. O animal engordado durante o ano, é amarrado a um banco ou a um carro de bois e morto, depois era chamuscado e lavado, aberto e desmanchado.
Neste último mês temos ainda o Natal, o qual deixaremos para uma crónica específica em tempo oportuno.
Haveria muitas outras tradições a referir porém este nosso escrito já vai longo. Deixaremos para outras oportunidades.
Eng.º Rocha dos Santos
O lavrador leceiro cumpria religiosa e silenciosamente o seu paciente labor quotidiano ao ritmo que a própria natureza lhe impunha, só descansando um ou outro dia de festa, se isso lhe fosse permitido. Por vezes nem domingos havia!
De Janeiro a Dezembro vivia para o trabalho, relacionando muitos deles com as suas actividades tal como sucede com os meses de: Junho, o S. João; Julho, o de S. Tiago; Setembro, o de S. Miguel; Outubro, o dos Santos, Novembro o de Santo André, ou das sementeiras; e o de Dezembro, o do Natal ou o mês das matanças, por ser a época em que se mata o porco.
A indicação dos meses fazia-se por uma simples festa ou de qualquer acontecimento.
As estações do ano dividiam unicamente, em meses de Verão e meses de Inverno.
No inicio do mês de Janeiro era hábito grupos percorrerem as ruas acompanhados por música de um ou outro instrumento musical, indo de porta em porta cantar as janeiras.
Se o dono da casa correspondia abrindo-lhes a porta, cantavam-lhe: “Viva o dono desta casa / Raminho de salsa crua / Quando se põe á janela / Ilumina toda a rua”. “Viva a dona desta casa / Quando põe o seu mantéu / Quando vaia para a igreja / Parece um anjo do céu. Viva tudo, Viva tudo / Viva tudo nesta hora / Viva também o menino / Para não ficar de fora”; caso isso não acontecesse, gritavam: “nesta casa cheira a unto aqui mora algum defunto. Esta casa cheira a breu aqui, morreu algum judeu”. E… toca a fugir!
Em Fevereiro, dizia-se: “Que matou a mãe ao soalheiro”, e também que: “Lá virá o meu amigo Março que fará o que eu não faço”; tudo isto, claro, relacionado com o tempo de sol e chuva que fazia. Era o mês do Carnaval ou Entrudo, época em que as pessoas se entretiam, disfarçando-se com roupas velhas “correndo o entrudo ou o farrapão”, metendo-se com quem passava, usando esfregarem as caras, mutuamente, com farinha e previlhos. Embora actualmente escasseiem os farrapões, há os mascarados, sendo os encontros em modernos bailes em recintos fechados, estando em decadência o Carnaval grotesco vivido na rua.
Em Março, “em que tanto durmo como faço” ou em Abril de “águas mil, coadas por um funil” ou em que “queima-se o carro e o carril”, ocorria a Páscoa com todo o seu tempo de preparação, com as Procissões dos Passos, a queima do Judas em que é escolhida uma pessoa da comunidade para ser caricaturizado, representada por um boneco de palha com bombas no seu interior ao qual é chegado o fogo após ser lido em tom jocoso o seu “Testamento”, em verso, e a Visita Pascal; e com a chegada do último dia do mês é tradição, os leceiros, grandes e pequenos, cortarem as maias nos campos próximos para as colocar nas suas casas, em todas as portas, janelas e até nos quintais, sementeiras e aidos do gado e capoeiros.
Diz a crença popular que as maias, isto é, as flores da giesta, colocadas nas habitações, significam os sinais postos ao longo do caminho para que Nossa Senhora não se enganasse, aquando da sua fuga para o Egipto com o Menino Deus.
Casa que não tinha maias colocadas ao entrar o mês de Maio “em que se comem as cerejas ao borralho”, o Diabo sujará tudo, além de outros estragos.
O mês de Junho, “com foucinha em punho” traz-nos os Santos Populares com todos os seus folguedos, as fogueiras e os bailes de rua que atingindo o seu ponto máximo no S. João, apesar de “pelo S. João os bois beberem nas pegadas”, “…cobre o milho o rabo ao cão”.
Uma tradição leceira deste mês de Junho é a cascata, que nos traz à memória o deslumbramento da imaginação, da harmonia e da inocência do representar o quotidiano da nossa terra em pequenas figuras de barro compradas na feira da louça do senhor de Matosinhos.
A festa era tal que até se cantava: S. João da Boa Nova. / Nós te qu’remos festejar! / E se queres uma prova, / A tradição se renova, / ‘Stamos na rua a cantar! / … Da nossa terra formosa, / Foste festa popular! /E desta forma amorosa, / Vem tua Leça briosa, / A tradição reatar.
As crianças na rua faziam uma pequena cascata, e por vezes só com um dos Santos na mão, pediam “um tostãozinho para a cascatinha”.
Em Julho, já com o tempo mais quente, começava o ritual dos banhos, primeiro no rio Leça, com fundos lodosos perigosíssimos onde muitos jovens ficaram; mais tarde os banhos de mar tomados de manhã bem cedo e rápido porque o trabalho não esperava.
Em meados de Julho regavam-se os campos para o que se cavavam sulcos extensos de modo a conduzir a água.
Com Agosto à porta surgem as romarias populares, e além das festividades anuais que cada freguesia ainda mantém, perduram as populares e tradicionais romarias, meio pagãs, meio religiosas, onde o povo dá largas à boa disposição.
Pertencem ao número dessas romarias a Santa Eufémia, no alto da Carriça, onde o nosso pai Moisés ia de bicicleta, comprar as alhos e a melancia; a Senhora do Bom Despacho na Maia, etc.
Espontaneamente, ou não, os romeiros juntavam-se em grupos, designados por rusgas e manhã cedo lá iam a pé cantando e dançando, regressando ao escurecer, já com os farnéis vazios.
Destas rusgas nasceu o Rancho Típico da Amorosa defensor e guardião das tradições leceiras que com os seus trajes tão bem conservados, cantares e dançares, mantém vivas não só as tradições leceiras mas também a alma do nosso povo. É um regalo vê-los actuar! Obrigado Raúl.
Durante muitos anos os nossos primos Henriqueta e Hermano Rocha alimentaram a tradição cuidando com toda a dedicação desta nossa tão nobre associação.
Depois do árduo trabalho do campo durante o ano, chega Setembro com a verdadeira azáfama, pois é altura de trazer para casa o milho, outrora transportado em carros de bois, descarregando-o no coberto onde era desfolhado, o que constitui um cerimonial, pois se durante o dia era um trabalho silencioso à noite, ao serão, juntavam-se os rapazes das redondezas. Quando alguém encontrava uma espiga vermelha, “milho rei”, tinha licença para distribuir abraços à roda. Se for espiga “rajada” ou “entremeada”, em vez de abraços à roda, são beijos. Os donos da casa ofereciam pão, vinho, e azeitonas, aparecendo quem tocasse, a gente jovem não resistia à tentação de dançar.
Em Outubro com os trabalhos já encaminhados e o inverno a aproximar-se vamos referir uma outra tradição leceira, que naturalmente desapareceu; referimo-nos às lavadeiras de Leça, que no braço doce do rio lavavam a roupa de sua casa e a de muitas famílias inglesas que à época aqui habitavam, constituía um ritual não só pelo trabalho mas também pelo aspecto social, pois permitia pôr em dia as notícias sobre a vizinhança com o desmascarar de alguns “segredos” e o levantar de alguns boatos! Era uma coscuvilhice! Claro que nos encontros com as mulheres da outra margem do Leça, por vezes as conversas azedavam, ao ponto de chegarem a vias de facto.
Novembro começa com a homenagem aos finados e aqui, por muito que nos custe, vamos falar dos enterros.
Assim, quando morria alguém “tocava o sino a sinal” por duas vezes se era mulher e três vezes se era homem.
O corpo é lavado. Se é homem faz-se-lha a barba, isto é o barbeiro dá-lhe uma “escanhoadela” e é vestido. Posto no caixão procede-se ao velório durante o qual se juntam familiares e amigos, sendo habitual à noite servir café e aguardente.
Á hora de sair o enterro o padre procede ao “levantar do corpo” organizando-se o cortejo fúnebre, à frente a cruz e dois acompanhantes aos guiões ou às borlas, serviço em que ganhámos alguns cobres conjuntamente com os nossos amigos Valdemar e Tito ao serviço do Sr. Silva Armador. A seguir o padre com o rapaz da caldeirinha e atrás do caixão os acompanhantes, familiares e amigos transportando palmas de flores e coroas.
Ainda em Novembro surgiam os vendedores de castanhas que as assavam no forno do padeiro, após o que as punham num saco de serapilheira, cuja boca fumegava, e percorriam as ruas de Leça apregoando: “Quentes e boas! São da quinta da minha avó”!
Em Dezembro, já com frio, e com um cerimonial festivo fazia-se a “matança do porco”. O animal engordado durante o ano, é amarrado a um banco ou a um carro de bois e morto, depois era chamuscado e lavado, aberto e desmanchado.
Neste último mês temos ainda o Natal, o qual deixaremos para uma crónica específica em tempo oportuno.
Haveria muitas outras tradições a referir porém este nosso escrito já vai longo. Deixaremos para outras oportunidades.
Eng.º Rocha dos Santos
in "A Voz de Leça" Ano LV - Número 4 - Junho de 2008